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    Responsabilidade social na universidade portuguesa: da origem histórico-legislativa ao enquadramento sobre o tema

     A universidade é, provavelmente, a única instituição europeia que durante mais tempo preservou os seus padrões fundamentais, o seu papel social e as suas funções básicas ao longo da história.

    Criação do Ocidente cristão do século XII, a universidade tem na sua gênese uma forte influência papal que proporcionava à instituição, à comunidade de professores e alunos e aos graus conferidos uma legitimidade universal.

    As universidades do século XVI, ainda que perseguindo o mesmo modelo estrutural, são influenciadas por fatores político-territoriais e religiosos, efetuando a ponte para a modernidade do século XIX, onde surgem duas linhas de desenvolvimento distintas, que viriam a marcar indelevelmente a história das universidades. Assim, num eixo, como salienta Rüegg (1996, p. xxii), encontramos “a orientação do sistema educativo organizado central e governamentalmente, aperfeiçoado por Napoleão e visando à imediata utilidade social” e, noutro eixo distinto, o modelo “que foi inspirado por von Humboldt, o da investigação sem objetivos práticos e destinada a servir à educação intelectual da raça humana”, marcando, esses dois modelos, o incremento das universidades como instituições científicas e escolares até a Segunda Guerra Mundial.

    Após a guerra, segue-se uma expansão sem precedentes até os dias de hoje, tanto pela multiplicação do número de instituições e pela importância social reconhecida como, especialmente, pela intensidade na pesquisa científica e ensino acadêmico efetuado, tornando a universidade, pela chancela que conseguiu preservar e o modelo corporativo que seguiu ao longo da história, a instituição europeia par excellence e, enquanto universitas litterarum, a “instituição cultural que cultiva e transmite todo o corpus das disciplinas intelectuais metodicamente estudadas” (RÜEGG, 1996, p. xvii).

    Hoje a função social universitária é entendida diferentemente daquela que no passado lhe estava associada, deslocando-se do conceito de “função” para o de “responsabilidade”, ou seja, do direito ou dever de agir , na acepção jurídica, para o de “instituição cidadã”, no âmbito da responsabilidade social. Tal não significa que tenha deixado de ter “função social”; apenas se foi afastando de uma certa “filantropia” do passado, ancorada numa ideia de virtude social.

    Na sua origem, se por um lado, os setores que mais podiam influenciar a universidade eram o clero e a administração régia, por outro, eram também – e ao mesmo tempo – os principais clientes e promotores da cultura universitária (MATTOSO, 1997, p. 307).

    Consequentemente, uma das principais causas da passagem das escolas a universidades é que o estudo das letras e das artes passa a ter objetivos específicos, deixando de ser o culto pelo culto, sem um objetivo social a preencher, para passar a servir para o exercício de funções eclesiásticas ou de apoio régio. Surge, assim, “um determinado sentido social, na atividade da gente de estudo, na medida em que servir a Igreja representa já, de certo modo, servir a Sociedade” (CRUZ, 1985, p. 250). Mais tarde, a partir da Reforma, apesar de a universidade continuar consciente da sua missão, isto é, de colocar a cultura superior a serviço da comunidade, deixa de realizar obra de interesse universal em razão da divisão da cultura cristã, tornando obsoleto o ius ubique docendi em virtude de o ensino passar a ser diferente duma nação católica para uma protestante. Esse afunilamento geocultural da universidade ganha maior evidência no Iluminismo, com a sua circunscrição a instituição nacional e pelo progressivo abandono do latim como língua científica. Situação que só mais tarde, já no século XX, com o progresso das comunicações e a adoção de tratados internacionais, o sentimento de comunidade supranacional viria a recuperar outra consistência, permitindo que os homens de estudo dos diferentes países ficassem em condições de melhor se conhecerem e de melhor se compreenderem uns aos outros (CRUZ, 1985, p. 252 a 258).

    Na vertente social do acesso à cultura superior, o exercício da caridade cristã era exercido por mecenas que destinavam recursos para instituições de filantropia , pelos monarcas, através da concessão de bolsas de estudo aos escolares do seu país e pela própria Igreja, não só pela fundação de colégios universitários e pelo livre acesso das dignidades eclesiásticas aos indivíduos de todas as classes sociais, como pelo legado assistencialista, pilar da missão universitária e integrador das funções da universidade: transmissão da cultura; ensino das profissões e investigação científica e educação de novos homens de ciência (GASSET, 2003, p. 53).

    Ainda que na sua gênese a função social da universidade fosse parte integrante do seu modelo organizacional enquanto instituição social – na relação com a comunidade e para a comunidade –, a história da universidade veio demonstrar que “a atividade universitária foi decrescendo progressivamente de autonomia e de liberdade intelectual ao longo dos séculos” (CRUZ, 1985, 260), não só por uma visão utilitária da educação como, especialmente, pelo controle por parte daqueles que lhe concedem os recursos financeiros necessários à atividade.

    Questionar o papel social da universidade permite, assim, confrontar conjuntos de valores e normas fundamentais que na sua aplicação não se revelam homogêneos. A igualdade de oportunidades de acesso ao ensino superior e de continuação de estudos conflitua com a desigualdade na distribuição de recursos sociais e económicos, assim como na desvantagem comparativa entre agregados familiares. O amor sciendi associado à indiferença quanto ao valor econômico dos resultados da investigação colide com a necessidade de utilização social e econômica dos frutos do estudo acadêmico.

    Sempre que um valor se torna demasiado preponderante, a instituição e o próprio sistema perdem equilíbrio. Transformar a universidade numa instituição governamental ou permitir a sua “ascensão” a torre de marfim desloca a balança das funções da universidade, impedindo-a, enquanto instituição social complexa que é, de realizar na plenitude a sua missão.

    Não é certo que atualmente haja uma percepção genérica e consciente da importância e do significado da Responsabilidade Social Universitária (RSU). Até porque a compreensão desse conceito e a função que exerce difere no tempo, no âmbito, na extensão e na ação de cada país, podendo, ainda, diferenciar-se de região para região, consoante o seu estado de desenvolvimento ou enquadramento político-social.

    Em Portugal, na legislação do ensino superior desde 1930 até 2007, nada se refere concretamente sobre a terminologia da RSU. Porém, com reminiscências ao passado, e por se sentir que fazia parte da sua missão, regulamentavam-se situações com enquadramento na esfera da responsabilidade social, tendo em vista atender às necessidades de assistência escolar. É o caso do Estatuto da Instrução Universitária de 1930 , que instituiu bolsas de estudo nas universidades, dispensando os estudantes do pagamento de propinas e emolumentos, verificados os recursos e os encargos da família e o mérito escolar dos candidatos, submetendo a sua concessão a critério uniforme (artigo 72º e ss.).

    Ou, ainda, em pleno período do Estado Novo , segundo Parecer da Comissão Corporativa ao Decreto-Lei nº 40.900, de 12 de dezembro de 1956, verifica-se, na instituição da Comissão Permanente para o estudo dos problemas da vida circum-escolar e social dos alunos, que a regulamentação da extensão universitária residia em valências como “a habitação, a alimentação, a vida em comum, a educação física, a saúde, o conhecimento do mundo e das várias formas de cultura humana, o seguro, a escolha de carreira e o emprego” (COPETTO, 2002, p. 87-88). Já no ocaso do Estado Novo surge um dos mais importantes e reformadores diplomas de política educativa no ensino superior , a denominada “Reforma Veiga Simão” , que, logo na nota preambular, considerava que para corresponder à necessidade de assegurar o desenvolvimento social e econômico do País era necessário “um número cada vez mais elevado de cientistas, técnicos e administradores de formação superior, dotados de capacidade crítica e inovadora”. Para atingir este objetivo, cria novas universidades, institutos politécnicos e escolas normais superiores, concedendo-lhes inovadoras orientações que não se limitavam à sua organização; antes, exigia que tivessem como funções principais, para além de ministrar o ensino de nível mais elevado, “promover a educação permanente e a extensão cultural, fomentar a investigação nos vários ramos do conhecimento”, tudo isso no intuito de “contribuir, no âmbito da missão de serviço à comunidade, para a resolução de problemas de caráter nacional e regional” (nº 1 do artigo 2 do Decreto-Lei nº 402/73, de 11 de agosto).

    A Constituição da República Portuguesa de 1976, em vigor, é fruto da revolução de abril de 1974, deixando para trás o período da ditadura e iniciando uma nova fase em democracia. Aquela Lei fundamental definiu programaticamente os princípios gerais pelos quais se devia reger a política educativa e, por esse motivo, foi necessário estabelecer uma nova Lei de Bases do Sistema Educativo (LBSE) .

    Aprovada em 1986, estabeleceu diferentes parâmetros orientadores da estrutura e do funcionamento do sistema, tendo em vista, como salienta CAMPOS (1987, 11) “ativar e mobilizar a realização de um projeto nacional que corresponda ao desafio da modernidade e do estado atual de democratização da educação e do desenvolvimento do País”. Nesse novo espírito, não foram novamente descurados princípios e orientações enquadradores de responsabilidades sociais no âmbito educativo. Assim, considerou-se que a educação teria de promover o “desenvolvimento do espírito democrático e pluralista, respeitador dos outros e das suas ideias”, de modo a formar “cidadãos capazes de julgarem com espírito crítico e criativo o meio social em que se integram e de se empenharem na sua transformação progressiva (nº 5 do artigo 2º da LBSE). A consciencialização da importância do sistema educativo na formação dos educandos para o “desenvolvimento da personalidade, da formação de caráter e da cidadania” era plenamente reconhecida, daí que se considerasse vital prepará-los “para uma reflexão consciente sobre os valores espirituais, estéticos, morais e cívicos e proporcionando-lhe um equilibrado desenvolvimento físico (alíneas b) e c) do artigo 3º da LBSE). E, no domínio exclusivo do ensino superior, considera-se como objetivo, entre outros, formar diplomados “para a participação no desenvolvimento da sociedade”, incentivar o trabalho de pesquisa e investigação científica visando o desenvolvimento “do entendimento do homem e do meio em que se integra”, “continuar a formação cultural e profissional dos cidadãos pela promoção de formas adequadas de extensão cultural” e “estimular o conhecimento dos problemas do mundo de hoje, num horizonte de globalidade”, consciencializando-os da prestação de “serviços especializados à comunidade e estabelecendo com esta uma relação de reciprocidade” (artigo 11º da LBSE).

    Apesar do exposto, só em 2007 surge pela primeira vez na legislação do ensino superior português, no Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior (RJIES) , a expressão: responsabilidade social. E ocorre logo como uma das incumbências das instituições de ensino superior (IES) – na dimensão instituição-cidadã – consciente do seu papel ativo no combate aos problemas da sociedade. É nessa perspectiva que o artigo 24º do RJIES dispõe sobre o apoio à inserção na vida ativa, indicando ser compromisso das IES “apoiar a participação dos estudantes na vida ativa”, “apoiar a inserção dos seus diplomados no mundo do trabalho” e acrescenta ser obrigação de cada instituição “proceder à recolha e à divulgação de informação sobre o emprego dos seus diplomados, bem como sobre os seus percursos profissionais”. Outras disposições no RJIES tratam de matérias consideradas na alçada da responsabilidade social universitária, como é o caso da ação social escolar, onde se pretende garantir que “nenhum estudante seja excluído do sistema do ensino superior por incapacidade financeira” (nº 2 do artigo 20), ou, ainda, a prerrogativa das IES na “prestação de serviços à comunidade e de apoio ao desenvolvimento” (alínea f) do nº 1 do artigo 8º). Como se observa, existe uma separação entre o que se considera caber no domínio da “responsabilidade social” e aquelas outras que sempre fizeram parte da história das instituições. O desemprego é um novo problema social para o qual foram chamadas as IES e que, por isso, tem de merecer um tratamento diferente numa outra dimensão de responsabilidade.

    Apesar da importância crescente que o tema da responsabilidade social universitária tem suscitado, a verdade é que são poucas as exceções , enquanto objeto e análise de estudo, na análise da política educativa portuguesa. Mesmo na gestão da responsabilidade social nas organizações, a descrição dos seus “efeitos na dinâmica do mercado e na competitividade a nível nacional não tem sido temática de estudo relevante” (SARDINHA, 2007, p. 3). E, num levantamento realizado em 2007 em sites de 20 IES, sobre o panorama geral da formação em responsabilidade social em Portugal, verifica-se que é maioritariamente lecionado em cursos de pós-graduação e em alguns mestrados, num número variável de horas em unidades curriculares que continham a designação responsabilidade social ou ética empresarial, mas sem se ter conseguido apurar se aqueles poucos cursos se chegaram mesmo a realizar ou se tiveram continuidade (SARDINHA, 2007, 6). Esses dados parecem indiciar algum desinteresse científico pelo social, isto é, menor preocupação com os problemas e os desafios que se colocam, não só a franjas (cada vez mais alargadas) da população com menores recursos, como ao modo de praticar e exercer negócios e atividades com relevo social. Porém, tal não ilustra verdadeiramente a realidade portuguesa.

    A diferenciação entre os conceitos de caridade e filantropia, que se começou a desenhar de forma mais clarividente a partir do século XVIII, por influência dos filósofos das luzes, não foi na ação propriamente dita, mas nos meios de realizá-la. A caridade, por ser obra piedosa, pressupõe a abdicação de toda vaidade do seu autor, propugnando o anonimato como valor máximo. Já a filantropia, por ser um gesto de utilidade, tem na publicidade a sua arma, visto que a publicidade provoca a visibilidade da obra e incita a rivalidade entre os benfeitores (DUPRAT, 1993 apud MAESTRI, 2011, 38).

    Historicamente verificamos que em Portugal, por influência cristã, sempre existiu uma melhor aceitação social pela virtude silenciosa da caridade. Foi assim que surgiu, em complemento ao trabalho da Igreja e de outras entidades do sector social, a Santa Casa da Misericórdia, que, em 1498, por obra da Rainha D. Leonor, atuava piamente junto dos pobres, dos presos e dos doentes, e que ainda hoje existe por todo o país em ações de solidariedade. O mesmo ocorreu com a universidade.

    A universidade portuguesa surge de uma petição por clérigos ao Papa , numa convergência perfeita entre o Clero, o Rei e o Papa (RUAS, 1978, 275). E essa ligação com a Igreja e com a coroa (mais tarde com o Estado) é um dos traços mais marcantes da história da universidade portuguesa. Essa influência traduziu-se que no âmago da universidade, para se realizar como instituição, tivesse obrigatoriamente função social. Fosse com a denominação de extensão universitária ou de atividades circum-escolares ou outras, a verdade é que a relação da universidade com o meio e com as condições dos estudantes constitui missão da universidade, decorrente de uma longa tradição de humanismo europeu.

    Existe hoje a consciência de que a formação para a cidadania e intervenção ativa na comunidade assumem um papel cada vez mais relevante para fazer face aos principais problemas e desafios que se colocam à humanidade, sendo que a universidade, enquanto instituição-cidadã, tem uma responsabilidade social decisiva na construção desse modelo de sociedade.

    O filósofo Ortega y Gasset, na sua obra sobre a missão da universidade, salienta que a universidade “foi nas suas horas melhores um princípio promotor da história europeia” (GASSET, 2003, p. 83), e é, certamente, nessas melhores horas que a universidade cumpre a sua função social.

    Referências

    CAMPOS, Bártolo Paiva. In: prefácio de Lei de Bases do Sistema Educativo, apresentação e comentários de Eurico Lemos Pires, Edições ASA, 1987.

    CARREIRA, Henrique Medina. As políticas sociais em Portugal. Gradiva Editora, 1996.

    COPETTO, Miguel. Autonomia universitária: enquadramento histórico, político e legislativo. Ed. Universidade Autónoma de Lisboa, 2002.

    CRUZ, Manuel Braga. Obras esparsas, estudos doutrinários e sociais. 2ª parte, vol. IV, Coimbra Editora, 1985.

    GASSET, Ortega Y. Missão da universidade e outros textos. Editora Angelus Novus, Lda., 2003.

    MACHADO, Maria de Lurdes. Legislação do ensino superior. Visilis editores, 1999.

    MAESTRI, Hugo Cruz. Função social da empresa, responsabilidade social e sustentabilidade: um enfoque jurídico sobre a tríade social que integra as sociedades empresariais. 2011. Dissertação apresentada ao Curso de Pós Graduação Stricto Sensu, Faculdade de Direito Milton Campos, 2011. Disponível em:
    <http://www.mcampos.br/posgraduacao/mestrado/dissertacoes/2011/hugmaestrifuncaosocialdaempresa.pdf>

    MATTOSO, José. História da universidade em Portugal, I volume, tomo I (1290-1536). Universidade de Coimbra e Fundação Calouste Gulbenkian, 1997.

    RUAS, Henrique Barrilaro. Educação de adultos em Portugal, no passado e no presente. In: Educação de Adultos. Braga: Universidade do Minho, 1978.

    RÜEGG, Walter. Uma história da universidade na europa. Vol I. Ed. Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1996.

    SARDINHA, Idalina Dias. Responsabilidade social no ensino e na prática da gestão empresarial. In: Dirigir, edição do Instituto de Emprego e Formação Profissional, nº 98. Junho de 2007.

    SILVA, De Plácido. Vocabulário Jurídico. 15ª edição. Rio de Janeiro: Forense. 1998.

    TORGAL, Luís Reis. A universidade e o Estado Novo. Livraria Minerva Editora, 1999.

    Miguel Copetto

    [1] Doutorando em Ciência Política, Mestre em Educação, Licenciado em Direito, Diretor Executivo da APESP - Associação Portuguesa do Ensino Superior Privado. Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.

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