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    Educação superior com fins lucrativos e responsabilidade social

    Robert Verhine[1]

    Lys Vinhaes Dantas[2]

     

    Introdução

    Características-chaves da educação superior no Brasil são o tamanho e a significância de instituições privadas legalmente classificadas como “com fins lucrativos”. Tais estabelecimentos, inexistentes antes de 1997, respondem hoje por aproximadamente metade das instituições de educação superior e das matrículas no país (Inep, 2015). Embora o Brasil ostente um dos maiores segmentos de educação superior com fins lucrativos no mundo, pouca atenção tem sido dada ao fenômeno por acadêmicos, jornalistas e formuladores de políticas que lidam com o segmento. Consequentemente, ele não tem sido objeto de número suficiente de análises e críticas. Pouco se conhece sobre a natureza e distribuição das IESLuc – como funcionam, qual é a qualidade do ensino que oferecem e como se comportam em termos de responsabilidade social [3].

    O objetivo deste artigo é apresentar alguns dos achados e conclusões emanados tanto da literatura internacional[4] como de estatísticas brasileiras disponíveis sobre educação superior com fins lucrativos, bem como refletir sobre suas potenciais implicações e aplicações no Brasil, especialmente aquelas relacionadas a questões de responsabilidade social. No escopo deste texto, a responsabilidade social na educação superior é analisada a partir de três dimensões básicas: 1) expansão de oportunidade (acesso e permanência); 2) qualidade de educação que atenda a padrões reconhecidos e 3) comportamento ético.

    O artigo é iniciado com uma breve revisão sobre o desenvolvimento e a situação atual de IESLuc no Brasil, construída a partir de dados nacionais disponibilizados pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep). Na sequência, trata sobre a definição de instituições com fins lucrativos (empresas educacionais), apontando razões pelas quais a natureza do segmento levanta questões e desafios à responsabilidade social. Na seção seguinte, o artigo discute cada uma das dimensões de análise da responsabilidade social já mencionadas. A seção final defende a adoção de políticas públicas que criem incentivos de modo a que a responsabilidade social seja promovida e assegurada no Brasil.

    Contexto e situação atual

    Durante determinado período, a educação no Brasil, como em boa parte das regiões no mundo, foi principalmente pública. No entanto, a expansão do setor público tem sido historicamente restringida pela escassez de recursos governamentais e pelo alto custo associado aos estabelecimentos que, além de ensino, são voltados para a pesquisa. Como consequência, desde a década de 1970, decisores de políticas públicas têm contado com o setor privado para responder à demanda por educação superior, tendo criado incentivos e um ambiente legal favorável a seu rápido crescimento. Essa tendência foi acentuada no fim dos anos 1990, quando houve alteração nas leis para permitir a criação de instituições educacionais com fins lucrativos (IESLuc). Novos estabelecimentos surgiram rapidamente e muitas instituições antigas alteraram seu status, passando de “sem fins lucrativos” para “com fins lucrativos” (SAMPAIO, 2011)

    A expansão de empresas educacionais foi incrementada após 2005 por múltiplos fatores, entre os quais a expansão do Fies – Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior –, o uso do mercado de ações brasileiro para buscar fundos de investimento, a implementação de um programa nacional que concedia isenção de impostos para instituições que oferecessem um número mínimo de bolsas a estudantes carentes (ProUni), e a entrada de grupos educacionais estrangeiros ávidos por um clima regulatório e de negócios mais favorável que o encontrado em muitos outros países, incluindo (especialmente) os Estados Unidos (OLIVEIRA, 2009).

    Muitos países, particularmente na Europa, não permitem a existência de IESLuc. Na América do Sul, apenas o Peru consente com a modalidade no nível superior. Em muitos países asiáticos e africanos, o modelo lucrativo é comum, mas normalmente voltado para ensino profissionalizante e outras ofertas técnicas no nível médio, e raramente englobam um percentual alto no total de matrículas (KINSER; LEVY, 2007). Nos Estados Unidos, em particular, a expansão das IESLuc vem recebendo, nos últimos anos, atenção por parte da grande mídia, da comunidade acadêmica e de autoridades governamentais nos níveis federal e estadual, mas mesmo naquele País o segmento privado lucrativo permanece relativamente enxuto, respondendo por menos que 10% do total de matrículas (U.S. DEPARTMENT OF EDUCATION, 2016).

    Neste sentido, no panorama internacional, o tamanho e a força das IESLuc no Brasil são relativamente únicos. Dados do Censo da Educação Superior de 2014 (BRASIL, 2014a) revelam, para aquele ano, os seguintes fatos e tendências:

    • Havia 998 IESLuc no País, representando 42% do total de instituições de educação superior (2.368) e 48% de todas as instituições privadas (2.070). Entre 2010 e 2014, o número de IESLuc cresceu de 951 para 998 (+5%), enquanto o número de privadas sem fins lucrativos caiu de 1.149 para 1.072 (-7%).
    • 94% das IESLuc eram faculdades, enquanto apenas 4% eram centros universitários e 2% universidades. Já as instituições sem fins lucrativos respondiam por 8% de centros universitários e 6% de universidades e, consequentemente, um percentual menor de faculdades (86%).
    • Quando observada a distribuição geográfica, as IESLuc encontravam-se desproporcionalmente concentradas nas regiões mais pobres do país, considerando que nas regiões Centro-Oeste, Nordeste e Norte estavam localizadas 45% de todas as IESLuc e apenas 27% das privadas sem fins lucrativos. Já no Sudeste e Sul os percentuais correspondentes eram de 55% e 73%, respectivamente. Com respeito à localização nas capitais e nas cidades do interior, 67% das IESLuc e 52% das sem fins lucrativos encontravam-se fora das capitais.
    • Com relação aos estudantes, as tendências de distribuição geral eram similares àquelas vistas para as instituições. Porém, enquanto existiam mais instituições sem fins lucrativos que com fins lucrativos, em termos de matrícula essa relação era invertida. Havia mais estudantes matriculados em IESLuc que naquelas sem fins lucrativos. De todos os estudantes de educação superior, 42% frequentavam IESLuc e 35%, instituições sem fins lucrativos. No grupo de estudantes das IESLuc, 42% frequentavam faculdades; 23%, centros universitários; e 35%, universidades. Já no grupo dos estudantes de instituições privadas sem fins lucrativos, 26% tinham matrícula em faculdades, 21% em centros universitários e 53% estavam em universidades. Se considerado apenas o segmento das universidades, no qual o setor privado responde por 64% do total de todas as matrículas, havia mais estudantes em universidades sem fins lucrativos (36%) que naquelas com fins lucrativos (28%).
    • Quanto ao número de estudantes por instituição, as IESLuc tenderam a ser maiores que as sem fins lucrativos, com médias de 2.807 e 2.205 alunos respectivamente. Dentre as IESLuc, 13% tinham menos que 100 estudantes matriculados, 58% menos que 1.000 alunos e, no outro lado da distribuição, cinco instituições tinham mais que 50.000 alunos. Dentre as instituições sem fins lucrativos, as respectivas percentagens foram 15% <100 alunos, 67% <1000 e duas organizações com mais de 50.000 estudantes.
    • Uma análise dos dados financeiros revelou que, em média, as IESLuc obtêm mais receita por estudante que aquelas sem fins lucrativos. Este dado é bastante interessante quando visto que há mais estudantes matriculados nas IESLuc e que este modelo tende a ter alunos mais pobres. De modo geral, PROUNI e FIES estão contribuindo para a consolidação do modelo lucrativo no Brasil.
    • Ainda sobre finanças, os dois tipos institucionais (lucrativo e não lucrativo) gastam proporcionalmente a mesma quantia em pessoal técnico e em custeio, mas as IESLuc destinam mais de suas receitas a investimentos na infraestrutura física e relativamente menos para o pagamento do quadro docente.

    Dados do Enade referentes aos anos 2010-2012 proporcionam informações adicionais sobre as características dos estudantes. Quando comparados com alunos de instituições sem fins lucrativos, aqueles matriculados nas IESLuc eram mais velhos (30 anos x 29 anos), em percentual menor de brancos (60% x 68%) e com renda familiar mais baixa (11% x 18% com renda superior a 20 salários mínimos). Além disso, os alunos das IESLuc tendiam a trabalhar em tempo integral (56% x 51%), ter pais sem escolaridade superior (83% x 76%) e a ter feito educação básica em escola pública (57% x 66%). Em relação ao sexo e ao recebimento de algum tipo de financiamento educacional, estudantes nos dois segmentos tinham perfil semelhante. Quando comparados com o setor público da educação superior, os estudantes do setor privado tendem a ser mais velhos e mais pobres. No entanto, quando observada a cor, os setores público e privado são similares, visto que o percentual de alunos brancos no setor público (65%) encontra-se entre aquele observado para as instituições privadas sem fins lucrativos (68%) e com fins lucrativos (60%).

    O modelo lucrativo e seus desafios

    No Brasil, a diferença entre instituições com e sem fins lucrativos na educação superior é turva. Os dois tipos organizacionais oferecem serviços similares, têm estrutura organizacional semelhante e são sujeitos aos mesmos processos de avaliação e regulação. Poucos sabem se determinada instituição tem ou não fins lucrativos, em parte porque muitas das IESLuc foram criadas a partir de IES sem fins lucrativos e, na percepção do cidadão comum, parecem não ter mudado ao longo dos anos, tendo mantido o nome e, em várias ocasiões, os mesmos corpos docente e administrativo. Além disso, os dois tipos tendem a cobrar mensalidades e taxas, buscam aumentar seu capital e, por questões de sustentabilidade, tentam maximizar a diferença entre receitas e despesas.

    Contudo, há algumas diferenças fundamentais, não apenas em termos de status legal e obrigações fiscais, como também relativas aos seus objetivos e controle. A distinção-chave não é a forma de obtenção de receitas, mas o seu uso e a sua destinação. No caso das IESLuc, o excedente (receitas – despesas) é destinado aos donos e investidores para uso próprio. Neste sentido, os tomadores de decisões estratégicas e os formuladores das políticas institucionais globais são beneficiários diretos, em termos financeiros, de seus esforços. Esse aspecto é sintetizado na definição oficial utilizada nos Estados Unidos, que determina que as IESLuc são empresas nas quais aqueles que a controlam, além de salários, aluguéis ou outras remunerações, recebem compensações pela assunção de risco (KINSER, 2013).

    Teoricamente, o mesmo não deveria acontecer nas IES privadas sem fins lucrativos. Nelas, a política global é definida por um conselho institucional composto por membros não remunerados (são apenas ressarcidos por despesas com participação) e que, portanto, não sofrem impacto financeiro direto decorrente de suas decisões. Aqueles que recebem salários e tomam decisões operacionais respondem a tal conselho. Por lei, o excedente financeiro é obrigatoriamente reinvestido na organização ou em objetivos educacionais relacionados, não podendo ser usado livremente por investidores ou por administradores. (BENNETT; LUCCHESI; VEDDER, 2010)

    Embora na prática o modelo sem fins lucrativos sofra distorções, a diferença entre o status com ou sem fins lucrativos pode ser crucial. Na literatura internacional tem sido observado que a distinção pode ser entendida como “retorno para a educação x educação para retorno”, “educação para o bem comum x educação para o cliente” ou, ainda, “educação para benefícios sociais x educação para ganho privado” (KINSER; LEVY, 2007).

    Estas distinções são simplistas e nem sempre correspondem à realidade, mas são significativas por realçar o fato de que incentivos às políticas e ao processo decisório diferem entre os tipos organizacionais e que tais diferenças indubitavelmente estão relacionadas à questão da responsabilidade social. A busca por lucros incentiva ou prejudica perspectivas de promoção de qualidade e comportamento ético? Essa questão é muito debatida na literatura internacional e a resposta simples é: depende. Alguns acadêmicos têm argumentado que a maximização de receitas e a minimização de custos pode levar a uma mensalidade muito alta, formas de seleção inescrupulosas, dependência excessiva de fundos federais de financiamento de alunos e distorções quando de informações e dados sobre qualidade educacional. Também pode minimizar os salários docentes (e, portanto, a qualificação docente), elevar a taxa aluno/professor, e manter tão baixas quanto possível as despesas com custos correntes e investimento.

    Por outro lado, muitos analistas conceituados defendem o papel das forças de mercado na formulação das políticas de educação superior. Tooley (1999), por exemplo, descreve sete virtudes do modelo lucrativo, argumentando que ele estabelece incentivos concretos para a expansão e diversificação da educação superior, para o estabelecimento de mecanismos para uma administração e controle efetivos, promoção da eficiência no uso de recursos escassos, para o foco nas preocupações e necessidades dos estudantes, e pela atração de capital de investimento no financiamento de esforços educacionais. Kinser (2013), de modo similar, considera falaciosa a dicotomia qualidade / lucro e argumenta que as rotas para a lucratividade não implicam produto de baixa qualidade.

    Pode-se concluir que o modelo com fins lucrativos carrega em si aspectos considerados positivos e negativos. Diante desse quadro, pergunta-se como fica a questão da responsabilidade social. Tal questão é abordada na seção que se segue.

    Responsabilidade social de instituições com fins lucrativos

    Para analisar a responsabilidade social de instituições de educação superior com fins lucrativos são utilizadas três dimensões, mencionadas na Introdução deste artigo, que são: 1) expansão de oportunidade (acesso e permanência); 2) qualidade de educação; e 3) comportamento ético.

    • 1) Expansão de oportunidade (acesso e permanência)

    Tem sido observado por especialistas que a educação superior oferecida por instituições lucrativas vem contribuindo para aumentar a oportunidade de acesso, dado que tem elevado substancialmente o número de vagas em faculdades e universidades. No Brasil, o segmento lucrativo atualmente atende mais de três milhões de alunos. Nos EUA, o número de alunos em IESLuc aumentou quatro vezes entre 2000 e 2010, elevando a participação no total de matrículas na educação superior de 3% para 9% no período. As IESLuc têm também atuado de forma importante em muitos outros países, entre os quais Polônia, Coreia do Sul, Malásia, China e África do Sul (DOUGLASS, 2012).

    Boa parte dos pesquisadores entende que sem a participação das IESLuc as vagas ofertadas por elas não existiriam, visto que nem o setor público nem o privado sem fins lucrativos teriam preenchido a lacuna (BENNETT; LUCCHESI; VEDDER, 2010). Isso porque o segmento privado sem fins lucrativos, com os custos ascendentes e a ausência do lucro como incentivo, sofreu estagnação não apenas no Brasil, mas em outras partes do mundo. Já no setor público, a oferta tem sido severamente restringida pela elevação dos custos e pela limitação de recursos públicos. Alguns estudiosos têm feito referência ao que chamam de “efeito brasileiro”, quando IESLuc apressam-se em preencher a lacuna criada porque a educação pública não consegue manter o passo para o atendimento da demanda (DOUGLASS, 2012, p. 1). Os governos têm se deparado, com frequência cada vez maior, com débito crescente, contribuintes desgostosos e com a necessidade de atender demandas sociais em uma multiplicidade de campos e segmentos. O Brasil foi um dos poucos países no mundo que expandiram significativamente a educação superior pública na última década, mas, mesmo assim, o segmento atinge apenas cerca de 6% da população de 18 a 24 anos, teoricamente a faixa etária foco.

    Muitos observadores também concordam que a expansão das IESLuc proporcionou uma maior diversidade na oferta de educação superior (BENNETT; LUCCHESI; VEDDER, 2010). A obtenção de lucros é vinculada ao atendimento de necessidades específicas de alunos, muitas das quais relacionadas às constantes mudanças no mercado de trabalho, no qual novas ocupações são frequentemente criadas na busca por responder a novas exigências tecnológicas e demandas da clientela. Desimpedidas de observar tradições e rituais acadêmicos, a exemplo de entradas semestralizadas ou anuais, foco na pesquisa, autonomia docente, manutenção de campus acadêmico físico (e não virtual), as IESLuc podem rapidamente se adaptar às (e lucrar a partir das) constantes mudanças nas demandas de estudantes e de mercados. São exemplos da flexibilidade institucional do segmento lucrativo: uso de espaços alugados para oferta de cursos específicos, múltiplas entradas durante o ano, e oferta de cursos de graduação a distância (modalidade na qual é prevalente). Nos EUA, 60% da educação oferecida pelas IESLuc é administrada a distância (U. S. DEPARTMENT OF EDUCATION, 2016); no Brasil, o valor correspondente é de 30%, percentual bem mais alto que o observado para o segmento privado sem fins lucrativos (12%) e para o setor público (08%) (BRASIL, 2014a).

    Um outro aspecto que ilustra a contribuição do segmento lucrativo para o aumento de oportunidades na educação superior é o fato de que as IESLuc tendem a, de maneira desproporcional, matricular “estudantes não tradicionais” que de outra maneira não teriam acesso a ela. Pesquisas consistentemente apontam que aqueles que estudam em IESLuc, quando comparados aos das instituições tradicionais, têm maior probabilidade de serem mais velhos, mais pobres, com emprego em tempo integral e pertencentes a grupos minoritários sujeitos a discriminação social (BENNETT; LUCCHESI; VEDDER, 2010). Como visto na seção anterior, no Brasil, dados do Censo Nacional evidenciam essa tendência. Exatamente por atrair este segmento, nem sempre a oportunidade obtida por meio de acesso facilitado resulta na permanência do estudante até a conclusão de sua formação. A concessão de bolsas por meio do ProUni contribui para a permanência, mas não há informações sobre outras ações de assistência estudantil nesse sentido. Também é interessante observar que, para esse público não tradicional, o ProUni e o Fies são essenciais. No panorama brasileiro atual de cortes de recursos públicos, inclusive aqueles destinados à manutenção desses dois programas, talvez muitas das IESLuc não se mantenham sustentáveis.

    De todo modo e até agora, especialmente em relação à expansão do acesso à educação superior, o segmento privado lucrativo tem oferecido uma contribuição positiva. Todavia, esta contribuição pode ser facilmente tornada negativa se a educação oferecida tiver baixa qualidade e se a expansão das oportunidades educacionais for devida a práticas de recrutamento não éticas. Esses dois “ses” serão abordados a seguir.

    • 2) Qualidade da educação superior

    A literatura internacional apresenta resultados diversos sobre a qualidade em IESLuc. Em algumas situações, as instituições buscam seus lucros pela atração de estudantes e de financiamentos por oferecer um produto de qualidade, de forma a fortalecer sua reputação e sua imagem junto às comunidades. Muitas das IESLuc receberam bons conceitos no Sinaes no Brasil e, nos EUA, algumas delas oferecem doutorados que são altamente conceituados. Por outro lado, grande parte da mesma literatura alega que a obtenção de lucros é frequentemente prejudicial à qualidade. Muitas IESLuc entendem que os lucros são um fim maior que servir ao bem comum e, nesse sentido, buscam reduzir custos por meio de pagamento de baixos salários, contratação de professores por hora, maximização da relação estudante/professor e restrição de despesas operacionais e de investimentos. A alegação de baixa qualidade levou à abertura de muitos processos judiciais nos EUA contra as IESLuc por estudantes descontentes. Ao mesmo tempo, o Departamento de Educação americano denunciou a agência que certifica boa parte das IESLuc no País por uso de critérios lenientes e ineficazes em seus esforços de monitoramento do segmento com fins lucrativos (ANGULO, 2016).

    No Brasil, o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (Sinaes) é amplamente considerado um dos mais sofisticados no mundo, envolvendo autoavaliação, testagem de estudantes via Enade, visitas por avaliadores externos a cursos e instituições, e o uso de indicadores compostos, como o IGC (Índice Geral de Cursos) e o CPC (Conceito Preliminar de Curso)[5]. Análises dos dados do IGC para 2014 revelam que os escores médios dos segmentos sem e com fins lucrativos são essencialmente os mesmos. Para as universidades, o escore médio do IGC para as IESLuc e as sem fins lucrativos foi, respectivamente, de 2,67 e 2,68. Tais valores são inferiores àqueles observados para universidades federais (m = 3,10) e estaduais (m = 2,82). Entre as faculdades, as respectivas médias para as IESLuc e as IES sem fins lucrativos foram de 2,38 e 2,42 (BRASIL, 2014c).  As diferenças entre médias dos dois segmentos da educação superior privada eram insignificantes do ponto de vista estatístico.

    Dados do CPC fornecem informações adicionais sobre as diferenças relativas de qualidade entre os dois tipos de instituições privadas. No período 2010-2012, as médias de Enade e os resultados do IDD (Diferença entre os comportamentos esperado e observado) e do CPC foram mais altos para as sem fins lucrativos que para a IESLuc, mas estas tiveram escores mais altos nas variáveis que tratavam das qualificações docentes e do regime de trabalho. Uma análise de regressão dos dados do Enade indica que a diferença nos escores desaparece quando são controladas as características dos estudantes. Análises mais sofisticadas são necessárias para uma maior compreensão sobre a relação entre os dois segmentos do setor privado, por um lado, e a qualidade da educação, por outro (BRASIL, 2014b). 

    • 3) Comportamento ético

    Das três dimensões da responsabilidade social sob análise, a terceira é provavelmente a mais problemática, de acordo com a literatura acadêmica e a grande mídia internacionais. Em um primeiro olhar, o problema ético que mais sobressai diz respeito ao recrutamento de novos estudantes. As IESLuc dependem de economias de escala e, assim, buscam atrair o maior número possível de alunos. Normalmente isso gera um recrutamento no qual promessas são feitas a possíveis estudantes sobre as chances de se formarem e conseguirem um bom emprego – promessas essas por vezes muito exageradas. A tendência do pagamento de recrutadores vinculado ao número de alunos matriculados normalmente agrava o problema por levar à adoção de técnicas de vendas agressivas e ao uso de informação falsa. Estudos realizados nos EUA indicam que muitas instituições gastam mais em publicidade e em recrutamento que na própria educação de seus alunos (UNITED STATES SENATE, 2012).

    Em muitos países, instituições privadas podem se beneficiar de programas de financiamento de estudantes patrocinados pelo governo. Neste caso, as instituições podem lucrar sem correr tanto risco. Muitos alunos evadem ou não obtêm os bons empregos esperados e ficam sobrecarregados com as obrigações oriundas das dívidas contraídas para sua formação. Pesquisas mostram que, nos EUA, os alunos que frequentam IESLuc são aqueles mais prováveis a descumprir o pagamento de seus empréstimos, resultando em custos consideráveis que acabam sendo absorvidos pelo governo e, em última análise, pelo contribuinte (UNITED STATES SENATE, 2012). Não há evidência concreta de que tais abusos aconteçam comumente no Brasil e pesquisas precisam ser conduzidas para maior clareza sobre tais questões éticas.

    Considerações finais

    Nesta última seção, dado o tamanho e a contribuição do segmento educacional lucrativo no Brasil, assim como a falta de análises sistemáticas sobre ele, são listadas algumas sugestões para normas regulatórias adicionais que busquem endereçar os problemas já identificados na literatura internacional sobre o segmento. Como declarado em relatório produzido pelo Senado americano (UNITED STATES SENATE, 2012), as normas regulatórias devem alinhar incentivos para as IESLuc de modo que elas só sejam bem-sucedidas se seus alunos assim o forem.

    As sugestões para as normas, apresentadas a seguir, lidam com o recrutamento, a transparência, o endividamento estudantil e melhoramentos no aparato existente do Sinaes.

    • Recrutamento

    Práticas de recrutamento de estudantes têm recebido pouca atenção nos processos de avaliação e regulação da educação superior no Brasil. Baseadas na experiência de outros países, três normativas nacionais parecem ser adequadas. A primeira, como acontece nos EUA, deveria ser o impedimento de que o pagamento dos agentes de recrutamento se dê com base no número de estudantes por eles atraídos. Essa regra poderia contribuir para a redução do incentivo à utilização de práticas de venda agressivas ou enganosas. Em segundo lugar, não deveria ser permitido a qualquer instituição que gastasse mais em publicidade e recrutamento que em serviços educacionais centrais. Por fim, o uso de fundos federais do Fies ou de outras fontes governamentais para ações de propaganda e marketing deveria ser proibido.

    • Transparência

    Estudantes, estudantes em potencial e seus pais precisam ter informações relevantes e acuradas para escolher uma instituição e um campo de estudo. As instituições, por isso, devem incluir em suas webpages dados confiáveis quanto às taxas de aprovação e de conclusão dos cursos e sucesso do egresso no mercado de trabalho, com indicadores como percentual de alunos em trabalhos remunerados após a conclusão do curso e média salarial. Para isso, as instituições precisariam coletar dados sobre o fluxo de alunos e a trajetória profissional dos egressos. Poucas instituições nos setores público ou privado coletam tais dados no presente, mas, se a coleta se tornar obrigatória, os dados poderiam ser obtidos por meio de sistemas institucionais de monitoramento e acompanhamento. Uma recomendação semelhante inclui criar, on-line, um Centro de Reclamações de Estudantes, para a coleta e o referenciamento das queixas estudantis às agências supervisoras e aos setores governamentais responsáveis.

    • Endividamento estudantil

    O Brasil deveria seguir o modelo dos EUA e tentar evitar dependência excessiva de instituições e de estudantes no Fies ou em outros programas de financiamento. Nos EUA, as instituições não podem receber mais que 90% de suas receitas de fontes públicas, tendo que participar com, pelo menos, 10% delas. Além disso, para serem elegíveis para o recebimento de recursos de financiamento estudantil, as instituições precisam manter sua taxa média de inadimplência discente abaixo de 30%. Em adição, os egressos devem ter ocupação remunerada de modo que a média dos pagamentos anuais com sua dívida de financiamento estudantil não ultrapasse 12% da sua renda bruta anual. Esses percentuais não precisam ser os mesmos no Brasil, mas a adoção de regras relativas à razão entre o pagamento de dívida e a renda do egresso é uma política que merece consideração. No entanto, é necessária atenção para evitar que tal política prejudique a participação dos segmentos mais pobres na educação superior.

    • Aprimoramento do Sinaes

    Por fim, é interessante considerar como o Sinaes vigente pode ser melhorado. O Sistema vem funcionando há 12 anos e tem sido um ingrediente importante na garantia de qualidade da educação superior. É legítimo reconhecer que o Sistema colocou a aprendizagem dos estudantes como elemento central e incluiu, como elementos que definem qualidade, a qualificação e o regime de trabalho docentes, além da satisfação discente com o ensino e a infraestrutura. Entre as mudanças apropriadas para o modelo Sinaes, pode-se citar: 1) tornar mais rígidos os critérios vigentes, expressos nos instrumentos utilizados nas visitas de curso e de instituição; 2) aumentar a atenção sobre a qualidade de serviços para o estudante em relação ao acompanhamento acadêmico e à colocação no mercado de trabalho; 3) aumentar a relevância do teste Enade, conferindo maior ênfase às competências acadêmicas gerais, tais como pensamento crítico, argumentação analítica e resolução de problemas; e 4) adequar os elementos que compõem os indicadores-chaves, como o CPC e o IGC, de modo a que respeitem os diferentes objetivos dos diferentes tipos de instituições.

    Embora o foco do presente trabalho sejam as IESLuc, é importante ressaltar que a educação superior no Brasil, pública ou privada, deve ser ofertada considerando-se a educação como direito para todos. O acesso e a permanência precisam ser assegurados de modo que o aluno conclua sua formação com qualidade reconhecida pela sociedade. Assim, é que políticas que assegurem acesso, permanência, qualidade educacional, ofertados de maneira ética e transparente, devem valer para qualquer instituição de educação superior, independentemente de ser ou não lucrativa.

    Referências

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    BENNETT, D.L.; LUCCHESI, A.R.; VEDDER, R.K. For-profit higher education: growth, innovation and regulation. Columbus, OH: Center for College Affordability and Productivity, 2010.

    BRASIL. Ministério da Educação. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais. Censo da Educação Superior 2014. Brasília: INEP, 2014a.

    ______. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais. Educação superior/indicadores/cpc. 2014. Brasília: INEP, 2014b.

    ______. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais. Educação superior/indicadores/igc. 2014. Brasília: INEP, 2014c.

    CARVALHO, C. H. A. “A mercantilização da educação brasileira e as estratégias de mercado das instituições lucrativas”. Revista Brasileira de Educação, n. 18; v. 53, p. 761-776, 2013

    CORBUCCI, P. R.; KUBATA, L. C.; MEIRA, A. P. B. “Reconfiguração estrutural ou concentração de mercado superior privada no Brasil”. Radar, n. 46, p. 39-45, ago. 2016. 

    DOUGLASS, J. A. Money, politics and the rise of for-profit higher education in the U. S. Research and occasional paper. Center for Studies of Higher Education, University of California, Berkeley, 2012. 

    KINSER, K. “The quality-profit assumption”. International Higher Education, n. 71, Spring,  p. 12-13, 2013.

    KINSER; K.; LEVY, D. C. “For-profit higher education: U. S. tendencies, international echoes”. In: J. F., FORREST, J. F.; ALTBACH, P. G. (eds.), International handbook of higher education. New York, NY: Springer, 2007. p. 107-119.

    OLIVEIRA, R. O. “A transformação da educação em mercadoria no Brasil”. Educação e Sociedade, 30 (108). p. 739-760, 2009.

    SAMPAIO, H. “O setor privado de ensino superior no Brasil: continuidades e transformações”. Revista Ensino Superior Unicamp, v.4. p. 28-43, 2011

    SGUISSARDI, V. “Modelo de expansão da educação superior no Brasil: predomínio privado/mercantil e desafios para a regulação e a formação universitária”. Educação & Sociedade, v. 29, n. 105. p. 991-1.022. dez. 2008.

    TOOLEY, J. “Should the profit sector profit from education?” Educational Notes No. 31. London: Liberatarian Alliance, 1999.

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    UNITED STATES SENATE. For profit higher education: report of the Health, Education, Labor and Pensions Committee.  Washington D. C.: U. S. Senate, 2012.   

    WILDAVSKY, B. The great brain drain: how global universities are reshaping the world. Princeton, NJ: Princeton University Press, 2010.

     

    [1] Professor Titular (aposentado) da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.

    [2] Professora Adjunta da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.

    [3]Autores como Sguissardi (2008); Oliveira (2009); Carvalho (2013); e Corbucci, Kubota, Meira (2016) debruçam-se sobre o segmento com fins lucrativos sem, no entanto, focar a diferença no funcionamento e no nível de qualidade entre este segmento e aquele sem fins lucrativos.

    [4] Para uma revisão da literatura internacional, ver, por exemplo, Kinser, Levy (2007) e Wildavsky (2010).

    [5] O IGC – Índice Geral de Cursos – é a média ponderada dos CPC (Conceito Preliminar de Curso) de uma determinada instituição. O CPC, por sua vez, é calculado para cada curso de graduação com base no desempenho de seus alunos no Enade, a qualificação e o regime de trabalho de seus docentes, e avaliação de seus alunos sobre a organização pedagógica e a infraestrutura física do curso. 

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